Compartilhando o Amor
Por Lúcia Tina
Publicado originalmente no livro Guarda Compartilhada, organizado pelo Desembargador Antônio Carlos Mathias Coltro, editora Forense, 3ª edição
I – INTRODUÇÃO
“O cuidado com a prole (...), tão espontâneo a ponto de dispensar um apelo à lei moral, constitui o modelo primordial humano e elementar para a coincidência entre responsabilidade objetiva e sentimento subjetivo de responsabilidade, através do qual a natureza nos dispôs para todas as espécies de responsabilidade que não são tão garantidas pelo instinto, e preparou para isso o nosso sentimento” – Hans Jonas. O princípio responsabilidade. Princípio da compaixão e cuidado, de Leonardo Boff. 3. ed. Editora Vozes, p. 98.
A regra da guarda única perdeu espaço com a vigência da Lei 11.698/2008, que inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a guarda compartilhada, de forma a priorizar o interesse do filho em prol da vontade dos pais. Agora, com a nova alteração legislativa inserida pela Lei 13.058/2014 fecha-se algumas lacunas deixadas pela lei anterior, principalmente quanto à convivência equilibrada dos filhos com seus pais.
A ratio das leis sobre este tema é sempre a de afastar da relação de filiação os reflexos do conflito conjugal (pai e mãe), por se tratar de duas relações distintas em que a decadência de uma não deve levar à falência a outra, de forma a prejudicar a formação dos filhos no convívio familiar.
O instituto da guarda única, como conseqüência da separação do casal, criava para um dos ex-cônjuges, ou ex-companheiros, verdadeiro monopólio sobre o filho, de forma que o outro continuava a dividir e compartilhar responsabilidades impostas pela lei decorrentes do poder familiar, embora limitado no convívio com a prole.
Para que se possa refletir sobre a evolução legislativa que acolheu a guarda compartilhada como regra jurídica, é fundamental analisar a relação de filiação sob dois aspectos, o objetivo (direitos e deveres impostos pela lei) e o subjetivo (o afeto decorrente de um direito natural), na tentativa de delimitar o sentido do novo instituto, assim como o limite da intervenção estatal na esfera familiar.
O aspecto objetivo da convivência parental, acima de gerar deveres para os pais, configura o mínimo de direitos dos filhos em receberem cuidados impostos pela lei, como os previstos no art. 1.634 do CC e no art. 22 do ECA.
A relação familiar sob o enfoque subjetivo, visto sob uma dimensão afetivo-antropológica, abrange o cuidado como conseqüência do afeto e do amor.
No dizer de Hans Jonas citado por Leonardo Boff, na relação de filiação há uma coincidência entre a responsabilidade objetiva e o sentimento subjetivo de responsabilidade, na medida em que há, naturalmente, uma consciência de proteção ao filho que não precisaria de lei para determinar deveres parentais.
Com a regra da guarda compartilhada, pretende-se o ideal nas relações intra-familiares visando a conjunção de ambos os aspectos, objetivo e subjetivo, da relação entre pais e filhos, de forma a minorar os efeitos negativos de uma separação para continuarem recebendo de ambos os pais o cuidado como um dever (responsabilidade em sentido objetivo) e como a expressão mais pura do amor (sentimento subjetivo de responsabilidade).
II - A Responsabilidade no Sentido Objetivo
O vínculo de filiação gera para os pais direitos e deveres decorrentes do poder familiar. Mesmo o pai ou mãe visitante (não guardião) mantém vínculo obrigacional com relação ao filho, por força de lei, com conseqüências jurídicas em caso de violação.
A intervenção do Estado na esfera familiar limita-se em estabelecer regras de proteção ao ente mais fragilizado da família, como a mulher, os filhos e o idoso. Assim, o legislador, ao determinar deveres paternais, exigiu um mínimo de cuidado na criação da prole, de forma a exigir, dentre outros deveres, o de guarda, sustento e educação.
Para efeito do presente trabalho deflagra-se como aspecto objetivo da relação de filiação o múnus público dos pais, determinado pela norma jurídica a impor o seu exercício e sua atuação na pessoa dos filhos.
A Constituição Federal, ao determinar o direito das crianças e dos adolescentes no art. 227, orienta os pais que exercem o poder familiar, assim como qualquer responsável pelos menores, à garantia do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, à convivência familiar, etc. A incumbência é ressaltada, ainda, no art. 229 da mesma carta, mas genericamente.
No Estatuto da Criança e do Adolescente há várias normas de proteção, como a do art. 22, o que também fazia o Código Civil de 1916 (art. 384), e reeditada no art. 1.634 do Código Civil, que garantiu aos filhos os deveres de criação e educação; de tê-los em sua companhia; de consentir para casar; de nomear tutor; de representá-los até os 16 anos; de autorizar para viajar ao exterior; de reclamá-los a quem ilegalmente os detenha; assim como o direito e dever de exigir-lhes obediência e respeito.
O poder familiar é fundamental para o desempenho das obrigações que têm os pais. Desta forma, qualquer ato de cerceamento da autoridade, de afastamento nas decisões na vida dos filhos, sem que haja culpa ou qualquer ato violador do poder familiar, torna-se totalmente impróprio e incompatível com o direito contemporâneo brasileiro.
Caminhou bem a lei ao impedir a limitação do convívio dos filhos com um dos pais, pelo mero desenlace conjugal, tendo em vista que após a separação prosseguem ambos titulares do poder familiar.
Sobre este ponto, o direito de visitação de um dos pais, que se ausentou do lar comum, não rompe com o aspecto objetivo do cuidado decorrente do poder familiar, este que continuará sendo exigido do Estado para o exercício de suas obrigações, permanecendo o pai visitante responsável pelos filhos de forma objetiva.
De acordo com as lições de Yussef Said Cahali, embora subsistam os deveres decorrentes do poder familiar, após a separação ocorrerá um verdadeiro enfraquecimento dos poderes paternos (maternos) por parte do progenitor privado da guarda.
O mencionado enfraquecimento de poder do pai (mãe) não guardião(ã) (no caso de guarda unilateral) configura conseqüência do seu afastamento em decorrência do direito de visita e não a sua causa, gerando a perda da intimidade, a perda da autoridade, e, certamente, o enfraquecimento de poder sobre os filhos.
Em verdade, o que ocorre com o direito de visita decorrente da separação dos pais é o rompimento do aspecto subjetivo da relação de filiação, o rompimento do afeto, do carinho, da vontade de estar junto, do abraço de boa noite e bom dia, dentre outros atos de amor, não jurídicos, mas essenciais para a formação do ser humano.
III – O Sentimento Subjetivo de Responsabilidade
Conforme anteriormente exposto, com a regra da guarda única os filhos ficam privados do contato físico com um dos pais, que passa a ser tratado como mero visitante e fiscal do desempenho do guardião, embora permaneça com os deveres impostos pela lei decorrentes do poder familiar.
Assim, após o desenlace conjugal entre os pais, o visitante permanece com a responsabilidade no sentido objetivo, no entanto, afasta-se subjetivamente dos filhos na medida em que se distancia dos momentos importantes, do carinho do dia a dia, da opinião quanto às decisões tomadas para a sua criação, do ombro amigo, do contato físico... um abraço diário. Na verdade, por força de uma relação conjugal dissolvida, pais e filhos passam a ter relações virtuais, à distância, o que pode ser prejudicial à formação da prole.
Neste sentido manifesta-se Luiz Schettini Filho, para quem “a forma mais eficiente de expressarmos o amor ao filho é manifestá-lo através de nossa presença na vida deles. ‘Não a presença de quem vigia ou toma conta, mas a presença de quem ouve, acaricia e acompanha. Criar é satisfazer as necessidades básicas de sobrevivência. E uma delas é a presença afetiva’”.
É certo que o tema transborda os limites do direito, como ciência jurídica, mas identifica-se em sua origem. Daí se conclui que o dado original não é o logos, a razão e as estruturas de compreensão, mas sim o pathos, o sentimento, a capacidade de compaixão, de dedicação e de cuidado com o diferente. Tudo começa com o pathos (sentimento).
Em verdade, o sentimento subjetivo de responsabilidade encontra-se em posição anterior à própria responsabilidade decorrente da lei que estabelece um mínimo de cuidado pelos pais aos filhos.
Assim, a crítica com relação à guarda única é exatamente a privação do filho de não poder usufruir de um direito natural de viver com a presença de ambos os pais, de não poder receber de ambos o afeto, o amor, o cuidado do ponto de vista subjetivo. Um verdadeiro cerceamento à dignidade, à liberdade e à convivência familiar, garantias constitucionais previstas com prioridade absoluta.
No entanto, para que se aceite a regra da guarda compartilhada, em sede de separação, seja consensual ou litigiosa, deve haver maturidade dos pais para não deixar respingar o litígio entre adultos na pessoa dos filhos em formação psíquica. Deve haver acima de tudo o amor ou, em sentido jurídico, o sentimento subjetivo de responsabilidade.
Compartilhar sem amor é mera divisão de responsabilidades, configura regime de partilha de tarefas pertencente ao campo meramente objetivo, sendo sempre exigível aquele mínimo imposto por lei.
Sobre este ponto, compartilhar a guarda dos filhos pressupõe cuidados objetivos e subjetivos, o primeiro pertencente ao campo do direito positivo e, o segundo, ao direito natural. Ambos sustentados por um único pilar: o amor parental.
IV – O Melhor Interesse dos Filhos
Não se pode afirmar ser a guarda compartilhada o remédio para todas as chagas. Em verdade, há premissas que devem ser analisadas pelo magistrado no caso concreto para excepcionar a regra.
O ponto de partida é a continuidade da relação afetiva entre pais e filhos, independente do rompimento do vínculo afetivo dos pais entre si. Não há dúvidas de que a quebra de uma relação afetiva causa danos ao desenvolvimento psíquico da criança em formação.
Por esta razão, o instituto da guarda única veio sofrendo alterações desde as legislações anteriores. Inicialmente, privilegiava-se o convívio materno (art. 10 da Lei 6.515/1977 e art. 16 do Dec.-lei 3.200/1941). Posteriormente, a Constituição Federal de 1988, no art. 229, determinou a criação, educação dos filhos pelos pais, além de assegurar a convivência familiar como garantia fundamental. Nesta linha, o Código Civil de 2002 passou a estabelecer que a guarda dos filhos será atribuída a quem tiver melhores condições para exercê-la, outorgando ao juiz o poder de regular de maneira diferente a situação dos filhos com os pais (arts. 1.583 e 1.584). Tal discricionariedade do juiz já estava prevista na Lei 6.515/1977, art. 13. Em seguida, surgiram dois projetos de lei (PL 6.315/2002 e PL 6.350/2002) para estabelecer como regra a guarda compartilhada, sendo o primeiro vinculado às dissoluções conjugais consensuais, e o segundo, de forma mais ampla, abrangendo tanto as separações quanto os divórcios consensuais e litigiosos. O último deu origem à Lei 11.698/2008 e, agora, a Lei 13.058/2014.
Importa ressaltar que o direito à guarda compartilhada foi uma conquista dos filhos de não romper com o vínculo afetivo com ambos os pais. Neste sentido a lei visa preservar a relação anterior com os filhos e não criar vínculo afetivo em decorrência da separação. Assim, o pai ou a mãe que nunca participou das decisões relativas aos filhos, de reuniões escolares, de escolha de tratamentos médicos e dentários, que sempre viveu distante do filho, embora sob o mesmo teto, não poderia beneficiar-se com o novo instituto, pois faria surgir nova relação afetiva em decorrência da separação, na contramão da ratio da lei.
A guarda compartilhada assegura ao filho a continuidade da relação afetiva com os pais (aspecto subjetivo), já que a relação material se perpetua por força dos deveres decorrentes do poder familiar (aspecto objetivo), conforme anteriormente exposto.
Sobre este ponto, estaria o magistrado autorizado a excepcionar a regra da guarda compartilhada, se identificado prejuízo para os filhos, restando este evidenciado na falta de amor, de cuidado e de afeto.
Questão da mais tormentosa para o magistrado é identificar o melhor interesse dos filhos para determinar a espécie de guarda no caso concreto, porque existe um complexo de fatores a serem considerados pelo juiz, cuja decisão não passa por sua exclusiva análise e avaliação, sendo de fundamental importância o decisor se socorrer dos conhecimentos técnicos de assistentes sociais, psicólogos, e até psiquiatras, sem se omitir de ouvir o menor, em ambiente neutro, que não interfira sobre a intelecção do filho cuja guarda está sendo judicialmente disputada.
Para Eduardo de Oliveira Leite, a noção dos melhores interesses do menor não é tão simples de identificar, por ser conceito que sofre as influências das estratégias empregadas pelos diferentes meios profissionais convocados para intervir no campo familiar: magistrado, advogados, assistentes sociais, psicólogos, clínicos, psiquiatras.
Segue o mesmo autor, para quem o critério do interesse do menor só adquire eficácia quando examinada a situação de fato, a partir da consideração de elementos objetivos e subjetivos da casuística, tendo a jurisprudência permitido identificar algumas tendências no tocante às relações afetivas da criança e sua inserção no grupo social, como o apego ou a indiferença que ela manifesta em relação a um dos genitores; o cuidado para não separar irmão; as condições materiais, tais como o alojamento e as facilidades escolares e morais; o vínculo de afetividade entre o pai e o filho, seu círculo de amizades, ambiente social, qualidade de cuidados etc.
Sendo assim, com a nova regra da obrigatoriedade da guarda compartilhada, o juiz continua tendo que avaliar, no caso concreto, a continuidade da relação afetiva já existente entre pais e filhos, de modo que a separação dos genitores não enfraqueça a relação de filiação, assim como não faça nascer uma relação afetiva que nunca existiu.
Deste modo, uma vez identificada falta de apego ou indiferença dos pais com relação ao filho (ou o inverso), não haveria como o Juiz forçar o surgimento de uma relação de afeto por meio da guarda compartilhada.
Neste sentido, o final do art. 1.584 parágrafo 2o. traz a hipótese em que o juiz não deve determinar a guarda compartilhada, ou seja, quando um dos genitores declarar que não quer. Ocorre que, mesmo se o(a) genitor(a) declarar que pretende a guarda, mas ficar claro para o juiz o exclusivo interesse financeiro para tal encargo, essa declaração está contaminada e o juiz deve interpretá-la como inaptidão para o exercício da guarda compartilhada.
O que se pretende com a nova lei que veio, inclusive, ampliar a convivência dos pais com os filhos, é evitar o rompimento da relação de amor entre eles na perspectiva do melhor interesse destes.
V – CONCLUSÃO
O valor cuidado timidamente vem tomando espaço no direito brasileiro, na medida em que “efetivas mudanças de paradigmas no que concerne aos direitos vinculados às relações de filiação, da pátria potestas e da valorização da convivência familiar, impõem novos caminhos para a sociedade e para o Poder Público”.
Por meio da lente do cuidado como um valor jurídico, o presente trabalho visou enfrentar a relação de filiação sob o aspecto objetivo (consubstanciado na responsabilidade parental determinada por lei, decorrente do poder familiar) e sob o aspecto subjetivo (sentimento subjetivo de responsabilidade), identificando os prejuízos causados pela guarda exclusiva em decorrência da restrição ao convívio do filho com ambos os pais, quando estes estão aptos ao encargo.
Pelas razões expostas, o âmbito de aplicação da guarda compartilhada deve ser o mais amplo possível e vem caminhando neste sentido com a nova Lei 13.058/2014, devendo o magistrado, no caso concreto, auferir o melhor interesse dos filhos, a fim de preservar relação de amor, de cuidado e de afeto preexistentes, afastando os reflexos negativos da relação dissolvida entre os genitores.
10-De acordo com as razões de veto do § 4.° da Lei 11.698/2008: Os termos da guarda poderão ser formulados em comum acordo pelas partes, entretanto quem irá fixá-los, após a oitiva do Ministério Público, será o juiz, o qual deverá sempre guiar-se pelo Princípio do Melhor Interesse da Criança.
11- PEREIRA, Tânia da Silva. O cuidado como um valor jurídico. A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 231.