Mediação: o amadurecimento do Direito
Publicado originalmente no livro Comunicação Diálogo e Compreensão.
Por Lúcia Tina
Paradigma do ganhar-perder
1997
Era o meu sétimo cliente após um ano e meio de formada. Me especializei em divórcios e quanto mais guerra entre casais, mais eu me armava... E amava! Meu trabalho consistia nesse anagrama antagônico das palavras amar e arma, sem esquecer a palavra-chave que pautava qualquer disputa de meu escritório: vingança! Quando acabava o amor, me contratavam como arma para se vingarem e, nesse ciclo vicioso da advocacia imatura, muitos diálogos eram evitados como técnica do êxito judicial.
– Doutora, ele me traiu e está doando um apartamento para a amante.
– Isso é grave. Precisamos propor uma medida judicial de urgência para evitar que ele continue extraviando seus bens.
– Mas eu pensei em conversar com ele primeiro.
– Conversar? Pra quê! É preciso pegá-lo de surpresa!
– Doutora, eu tenho três filhos. Não pretendo me separar assim, da noite para o dia. Conversar? Onde já se viu? Direito e terapia não se confundem... Pelo menos, era no que eu acreditava, em 1997.
Eu e a lei da época andávamos de mãos dadas na infância do Direito brasileiro. Pulávamos a fase da tentativa de conciliação e dávamos logo o primeiro passo através de uma ação judicial litigiosa. “Advogado que é bom, não espera, faz!” E assim comecei a atrair os clientes que espumavam por brigas, unindo os dois lados da mesma moeda.
– Viu? Te falei. Bloqueamos boa parte dos bens de seu marido e agora a sua partilha está segura para a ação de divórcio.
– Ah, que bom. Mas então agora terei que me divorciar?
– Sim, foi o que pensei. A não ser que você pretenda ficar casada com um homem que te trai.
– É verdade. Mas eu ainda amo este homem, doutora…
Foi a primeira vez que perdi a causa antes mesmo de ela começar. Aquela frase foi essencial para que eu começasse a pensar em outra estratégia para trabalhar em conflitos familiares. O verdadeiro interesse da minha cliente não estava sendo atendido... tirei dela a simples oportunidade de conversar. Sim, normalmente, quando um dos lados do casal procura o advogado é porque o diálogo já acabou. E o desatento profissional, em vez de proporcionar essa troca de angústias, erros e acertos, antes de propor a ação judicial, acaba optando pelo plano que, no fundo, vai se afastar cada vez mais do verdadeiro êxito da causa: a paz familiar.
É verdade que Direito não se confunde com terapia, mas, muito menos, com matemática. O Direito cartesiano que aponta o certo ou o errado, o sim ou o não, o culpado ou o inocente, o procedente ou o improcedente, vem deixando esse perfil binário para transformar-se em ternário, na medida em que a comunicação humana realiza-se em três pessoas: eu, tu, ele, e, na forma plural, nós, vós, eles. O pensamento ternário, ao incluir um terceiro, abre tempo-espaço que contempla a discussão, fundamentando-a no reconhecimento do valor do outro, que se encontrava encoberto pela ausência do diálogo (Barbosa, 2003, p. 35).
Com isso, passei a questionar a atitude da advogada que não espera, ao bloquear os bens do marido, deixando-o sem ter como pagar a escola dos filhos, o aluguel, o supermercado... um verdadeiro caos. A esposa não quer se divorciar, mas se vingar pela traição. O marido não quer se divorciar, mas precisa preencher uma lacuna sexual deixada pela esposa. Será mesmo que a ação de divórcio vai resolver a questão familiar? Não seria melhor ouvir do casal qual seria a melhor solução para o conflito criado por eles?
O processo judicial faz calar!
As palavras passam a ser estratégicas. Uma frase mal dita ou escrita pode servir de prova contra o outro. O processo se torna um campo de batalha e o advogado, a arma para lutar até o fim para seu cliente ganhar a causa e a parte contrária perder... A mãe ganhar e o pai perder ou vice-versa; o pai ganhar e o filho perder ou vice-versa; o neto ganhar e a avó perder ou vice-versa; o irmão ganhar e o outro perder ou vice-versa. Será mesmo que esse paradigma do ganhar-perder pacifica as questões familiares?
Há que se buscar, juntamente com os próprios criadores do conflito, a melhor solução para aquela família, que certamente não será a mesma para a minha nem para a do leitor.
Amadureci.
O Direito amadureceu.
Passamos a priorizar o diálogo.
A fase da conciliação passou a integrar o processo judicial de família.
Entramos na adolescência…
Paradigma do ganhar menos para perder menos
2006
Pego o lenço de papel e deixo na mesa para as lágrimas da consulta da cliente da tarde. Ela entra na minha sala decidida pelo rompimento da relação, firme de que não ama mais seu companheiro e quer partilhar uma casa que ajudou a construir. Aparentemente, o lenço não seria usado. A questão era patrimonial, ao menos, era o que parecia.
– Doutora, sei que tenho direito à metade da casa.
– Pelo tempo que estão juntos, sim.
– Doutora, quero logo resolver isso judicialmente.
– Calma, não seria melhor conversar com ele para tentar um acordo?
– Conversar? Não temos mais diálogo. Mesmo nas relações sexuais me limito a três gemidos e ponto final!
Há vezes em que a minha curiosidade de mulher invade o lado profissional. No caso, queria entender como se transa com alguém com quem não se conversa.
– A doutora vai conhecê-lo. Ele é arrogante, tem o rei na barriga e disse que eu não tenho direito à casa, pois o terreno foi comprado antes de me conhecer...
– Talvez ele não saiba o que diz a lei. Ele já tem advogado? Posso conversar com ele antes.
– Doutora, eu vim aqui porque sei que é uma advogada agressiva. Mas se achar melhor tentar o acordo, tudo bem. Só não pode amolecer, pois ele engole qualquer um.
– Conheço bem esse perfil. Deixa comigo.
Contactei o advogado e consegui convocar o “arrogante” para uma tentativa de conciliação. Optei pelo escritório do meu marido por ser mais imponente do que o meu. Para uma advogada em eterna fase de amadurecimento, homens com aquele perfil precisavam de algumas “técnicas de conciliação” em busca do equilíbrio, a começar pela escolha do local. Depois escolhi a sala de reunião cujas cadeiras são ajustáveis e, assim, pude abaixar aquela na qual o “arrogante” se sentaria, o que, na minha jovem concepção, poderia reduzir o seu grau de superioridade.
De fato, já havia dado um grande passo ao insistir para um diálogo, mas a má-fé consciente para equilibrar as partes prejudica qualquer processo sério de conciliação. Então, o homem afundado na cadeira falou:
– Doutora, a senhora deve saber que essa mulher não contribuiu em nada para a construção da minha casa. Tudo lá é meu. Comprei com meu suor. Não é justo que agora ela leve a metade na mão grande.
O advogado explicou a questão jurídica, reservadamente, ao seu cliente, me poupando de maiores desgastes. Tentei explicar que a minha cliente não queria a metade do valor da casa, mas os 50% do valor gasto para construir a casa durante a relação. O advogado se manifestou:
– Doutora, entendo o interesse de sua cliente, mas nunca existiu união estável entre eles. Não há nenhum motivo para partilhar os bens do casal.
Opa! Isso era uma novidade para mim. Para ela. Para ele. É claro que preenchiam os requisitos da união estável (união pública, contínua e duradoura, com a intenção de constituir família). Eu tinha provas suficientes e já estava com a ação semipronta, só que agora tinha o conhecimento dos argumentos da defesa. Resolvi perguntar, ao invés de atirar:
– E o que te faz afirmar isso?
Esse foi o segundo aprendizado no período de amadurecimento... usar perguntas para o fortalecimento do diálogo. Mostrar as armas, logo de cara, afasta qualquer possibilidade de conversar e se entender.
– Ora, eles nunca tiveram intenção de constituir família. Meu cliente fez vasectomia... não poderiam ter filhos.
Tive que me segurar. Acabava de conhecer a tese de que homens vasectomizados não podem constituir união estável! Que aberração! Já comecei a desconfiar de que aquela conciliação não iria para frente. Quando a discussão é jurídica entre advogados, sem permitir o diálogo entre o casal, fica difícil conciliar as partes.
Minha cliente baixou a cabeça. Percebi que o lenço deixado em cima da mesa seria brevemente usado... Parti para a fase das opções, pois conciliação é um acordo entre as opções oferecidas, o que difere da mediação, a que pretendo chegar na minha fase profissional adulta. Na mediação, as pessoas que vivem o conflito são estimuladas pelo mediador a criar suas próprias soluções. Quem cria o problema sabe resolvê-lo. A dificuldade é identificar a profundidade do conflito, muitas vezes mascarado por questões aparentemente simples e de fácil solução. Logo, me manifestei:
– Então, o que estamos fazendo aqui, não é mesmo?
– Tentando chegar a um acordo – disse o advogado. – Qual a sua proposta, doutor?
– A proposta do meu cliente é dar uma ajuda de custo de mil reais por três meses para ela voltar ao mercado de trabalho e depois ela se vira. É pegar ou largar
Pegar ou largar? Aquele foi o termo mais grosseiro que ouvi na minha vida profissional. Foi suficiente para a cliente acabar com a minha caixa de lenços de papel. Tirei um documento de adoção a que o casal tinha dado entrada havia dois anos. Então, falei:
– Vasectomizado pode ser pai adotivo, doutor. Nos vemos no Tribunal!
Me levantei, estendi a mão para me despedir e o afundado não se levantou. Não sabia se estava entalado ou acuado. Ele próprio se manifestou:
– Doutora, qual a sua proposta? – Tenho os documentos do valor da construção da casa. Faltam alguns, claro, mas calculo cerca de cento e oitenta mil reais em obras. Minha cliente se satisfaz com noventa, mesmo sabendo que ainda falta o valor da obra da piscina e garagem.
– Fechado. Pagaria quase isso de honorários para ir ao Tribunal. Como posso pagar?
– Bom, farei um termo agora, vou imprimir e vocês assinam.
O advogado concordou, sem muita alternativa. Saí da sala para chamar um estagiário e escanear os documentos. Minha cliente veio atrás. Olhei para ela e dei-lhe um forte abraço, feliz pelo acordo! Fiquei surpresa com a sua reação em prantos... já não havia mais lenços.
– Não, doutora, a senhora não entende... a senhora fez o seu melhor, mas isso não é o que eu realmente queria. No fundo, eu queria estar casada, com filhos, realizada no casamento. Mas fracassei. Fracassamos. Não há motivo para comemorarmos, doutora, não há!
Essa foi a maior experiência para o meu amadurecimento profissional. De adolescente passei à fase adulta e a lei me acompanhou... Conciliar é melhor do que brigar, mas em processo de família precisamos encontrar a justa medida entre a razão e o afeto, o que me faz lembrar da recente leitura de Leonardo Boff (2008, p. 3):
– A razão é a rainha e tem por tarefa disciplinar os afetos. Mas não de qualquer jeito. O controle não pode ser nem demais, senão eles se rebelam, nem de menos, senão eles predominam. Deve ser feito na justa medida que é o ótimo relativo. Encontrar esta justa medida é a obra da razão sábia transformada em sabedoria prática.
Através das técnicas da mediação, passei a procurar a justa medida.
Mediação é a nova fase do Direito. A nova era do diálogo que deixou de existir dentro dos lares. Mediar é saber ouvir, é não prejulgar, é ser ouvido, ser compreendido, compreender, entender o porquê do conflito e criar a solução com estímulos dos facilitadores. Amadureci. O Direito amadureceu.
A mediação já existe em muitos países. (1)
Entramos na fase adulta…
Paradigma ganhar-ganhar
2014
Meu escritório já não é mais o mesmo. A sala de reunião virou sala de estar. Troquei a mesa que me separava de meus clientes por um confortável sofá e poltronas, sem a preocupação de desequilibrar as pessoas ali sentadas. O local virou, simplesmente, um ambiente apropriado para conversar.
– Doutora, vim aqui porque quero me divorciar sem brigas. Esse era o perfil do cliente que passei a atrair. Era a minha medalha de ouro da profissão. É claro que mesmo em casos de pessoas que não querem conflitos, sempre existem pontos de confronto que devem ser cautelosamente trabalhados. Parece fácil, mas não é. A esposa se manifestou:
– Eu também não quero brigar, mas se ele vier com esse papo de guarda compartilhada o pau vai quebrar! Pronto. As aparências enganam... pelo menos a vontade de brigar não foi convidada para aquela conversa. Sim, não chamo mais de consulta meus atendimentos profissionais, são conversas. Passei a ser uma facilitadora para adoçar um diálogo amargo do fim de um casamento. A guarda compartilhada era o ponto controvertido visível e palpável, suficiente para uma boa causa judicial, que, em outros tempos, seria o meu primeiro passo.
Boa causa? Para um advogado, talvez, não para a família. Demoraria anos e anos em que a mãe apresentaria provas de conduta desapropriada do pai para cuidar dos filhos, campo minado para a criança ficar contra um dos pais como fantoche de palavras do outro e, nessa disputa, a família se desfaz, os filhos entristecem, as mães enlouquecem e os pais se afastam. Mas sempre vai existir um vencedor na decisão judicial. Vencedor?
Expliquei ao casal sobre a mediação e o método que eu adotaria. Ambos concordaram e tiveram a oportunidade de manifestar suas intenções no divórcio. Ela não pretendia afastar os filhos do pai, mas não estava disposta a dividir a guarda. Perguntei:
– Qual seria uma boa forma de manter o convívio com o pai sem dividir a guarda?
– Ele pode visitar quando quiser, e sem ninguém... agora, dormir? Só de quinze em quinze.
Sem ninguém... Duas palavrinhas-chave para que eu pudesse traçar o conflito. “É precisamente nos sistemas complexos – como as relações humanas, em que, em condições distantes do equilíbrio, pequenas perturbações ou flutuações podem ampliar-se e derivar em eventos e oportunidades imprevistas – que podem operar como plataformas para resolver conflitos, construir novas possibilidades, mudar a relação ou a organização do sistema” (Schnitman, 1999, p. 18).
– Doutora, explica pra ela que só o que eu quero é poder tomar decisões na vida de meus filhos. Afinal, me parece que isso é que se chama guarda compartilhada, né?
Expliquei conforme solicitado. Mas as duas palavrinhas, “sem ninguém”, continuavam pulsando e eu não conseguiria prosseguir sem desatar este nó:
– Bom, e se ele pegar as crianças quinzenalmente na sua casa, sozinho ou não. Tudo bem?
– Como assim, sozinho ou não? Tem que estar só! Sozinho!
Opa! A presença de alguém incomodava muito aquela mulher... Insisti no assunto. Perguntei ao pai:
– Você concorda em buscar as crianças sozinho?
– Sim, claro.
– De quinze em quinze com um pernoite durante a semana?
– Sim, sem problema. Prefiro os pernoites na quarta. Novamente, tive a impressão de que não estava tão difícil para criarem uma boa solução.
– Só vou deixar bem claro que se você levar aquela vagabunda, eu te mato!
Agora, três palavras se destacaram... Eu te mato.
Três palavras com vontade de serem ditas... Eu te amo.
Entre amo e mato, sobra um T.
Entre ela e ele, sobra alguém.
Quem sobra?
O conflito não era mais sobre a guarda, as visitas, o convívio do pai...
O conflito era sobre amor.
Um amor que agride e se fantasia para enganar o infantil processo judicial no campo familiar.
Esse era o ponto a ser trabalhado.
Amadureci. O Direito amadureceu.
(1) 1 Os Estados Unidos são precursores da mediação. No início, visava à paz industrial entre patrões e empregados em negociações coletivas, evoluindo depois para uma das formas alternativas de resolução de conflitos para ampliar o acesso à Justiça. Canadá, França, Portugal, Bélgica e Argentina também se destacam pela legislação específica sobre o tema há mais de dez anos, diferentemente do Brasil, que regulará a mediação junto com a reforma do Código de Processo Civil. Atualmente é regulamentada pela Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ. O foco da legislação brasileira é a mediação judicial, durante o processo, apesar de não impedir a extrajudicial, antes do processo. A dificuldade é convocar as partes, já que no Brasil a mediação prévia não é obrigatória, como em países como a Argentina e os Estados Unidos. A mediação é a bola da vez para desafogar o Judiciário. De acordo com o ministro Ricardo Lewandowsky, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu discurso de posse, “16,5 mil juízes têm, atualmente, a difícil tarefa de julgar cerca de 100 milhões de processos que tramitam nas várias instâncias da Justiça. (…) Procuraremos estimular formas alternativas de solução de conflitos, compartilhando, na medida do possível, com a própria sociedade, a responsabilidade pela recomposição da ordem jurídica rompida, que, afinal, é de todos os seus integrantes. Referimo-nos à intensificação do uso da conciliação, da mediação e da arbitragem, procedimentos que se mostram particularmente apropriados para a resolução de litígios que envolvam direitos disponíveis, empregáveis, com vantagem, no âmbito extrajudicial”.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: instrumento para a reforma do Judiciário. In: CUNHA, Pereira Rodrigo da (Org.). Afeto, ética, família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2003, p. 29-39.
BOFF, Leonardo. Justiça e cuidado: opostos ou complementares?. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (Orgs.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 1-12.
SCHNITMAN, Dora Fried. Novos paradigmas na resolução de conflitos. In: SCHNITMAN, Dora Fried e LITTLEJOHN, Stephen (Orgs.). Novos paradigmas em mediação. Porto Alegre: Artmed, 1999, p. 18-27.